Horizonte de Ti


Tinha a cara coberta, de nariz virado para o mar, respirando a poalha marinha, ia-me cobrindo também progressivamente, pestanejá-va perante os ataques dos grãos de areia, o vento levava-os, trazia-os em picotados na minha face, em rajadas cada vez mais envolventes. O mar esbofeteou-me em plena cara, uma grande onda enrolada num fragor de brisa húmida, sacudindo-me a mente de ar violento. Ao correr das ondas é um lugar onde se pode dar uma imagem à ausência, é um lugar que alivia porque é grande e vazio. Enquanto ficamos ali a olhar as ondas e o céu por cima delas, desdobramo-nos até ao horizonte com o mar. Perante a vastidão imcompreensível do mar, avaliava a medida da ausência de ti, até ao horizonte atrás do qual o mar se desenrola ainda, da dimensão para conter em mim a maré do equinócio da tua ausência. A névoa subia no frio. O ar refrescava mais depressa que o mar, que fumejava em grosso vapor branco para se condensar em chuva fina em mim. Cada vaga que se arqueava no momento de rebentar, expulsava como que entre barbas de baleia um sopro de brisa, de água e de névoa misturadas. A espuma movediça que retinha os ombros da ondulação desfazia-se em cada enrolar, em cada intersecção da rede, cada vez mais fina e difusa no meio de outros pontos pulverizados. Permanecia diante das ondas, a névoa avançava para mim como a ressaca de despenhava da altura do mar, os meus olhos enchiam-se de azul, a areia tomava entidade nua, já sem cor. Depois a névoa refluía com a água, a praia reaparecia, tinha tempo para avistar alguns farrapos de cidade, o piscar incessante do farol ao longe, e a névoa avançava de novo, ainda demasiada ligada à agua para poder desfazer-se dela e liberta-se livremente, a névoa avançava e refluía ao ritmo exacto da saudade, junto ao movimento do meu coração.

Contraluz Matinal


O sol nascia atrás da casa, a obscuridade permanecia muito tempo, quando à minha frente os telhados já rutilavam ou desembainhavam deslumbrantes facas, e os raios reflectidos penetravam obliquamente, uma luz estranha, secundária. As ruas ainda estavam sombrias, aquáticas, geladas, azuladas. Sem respiração, sem uma brisa sequer, asfixiadas sob o céu fechado, contemplá-lo tornava-se quase repousante. O céu começava a iluminar-se em baixo, húmido, com clarões em cunha. O horizonte fendia-se. Pássaros que eu não conhecia, num contraluz muito sombrio, agitavam-se turbilhões, subiam em circulos num só ímpeto e depois despenhavam-se, tentavam escapar à luz. Tinha os sentidos tão aguçados pela insónia que via a luz rastejar junto às paredes e a introduzirem-se nas arcadas, provocando sombras frias. Nesse instante, olhei no reflexo ambíguo e vi-te.

Esperanca, por um sonho que vi


Que venha a estrela da avareza da noite e a esperança venha arder, venha arder no meu peito. E venham tambem os rios da paciência da terra. E no mar que a aventura que têm as margens que acolhem o leito teu. E venham todos os sois que apodreceram no ceu, iluminados apenas por uma restea de luz fraquejante. E das mãos que venham gestos de pura transformação. Entre o real e o sonho seremos nós a vertigem. Dá-me os passos, os teus passos da manhã triunfal à solta, os gestos que tens. Quando a alegria descobre os dedos e envolvendo as mãos, que num toque suave transforma-me. Da vertigem que trouxer da noite, possa viver do teu sonho, nosso sonho mantido mesmo no mais intimo abandono, mesmo contra os portos que sobre nós se fecham em silêncio e noite, em murmurio. A viagem com que nos ameaçam vigiando todo o percurso do nosso sono, interminável sono, coração que vive e coração que morre. Assim esperando, assim sonhando mesmo quando o sonho recua até ao mais íntimo de cada um de nós, é o gemido sem boca, a precária luz que nem aos olhos cega. É Esperança, vai até que as que sofrem sozinhos à margem dos dias, e é a palvara que não escreve sobre as quatro paredes do tempo, o admiravel silêncio que os defende. Ou o sorriso, o gesto, a lágrima que deixa nas mãos unificadas. Quem não sabe o teu nome de fogo, eu sei, eu vi-o proclamado num ceu estrelado sob um terraço aberto, pelo espaço de um sonho que vi.

Alexandre O'Neill


Poderá vir um dia a verificar-se que o máximo que fundam os poetas é a possibilidade prosaica de alguém, muito mais tarde, se vir a lembrar de algumas das sequências de palavras que escreveram. No melhor dos casos, usarão essas sequências de palavras a despropósito, noutras sequências de palavras; no pior, aplicá-las-ão com aquilo que julgarem ser um propósito.

Nostos


Um nostos invadiu-me o corpo. À exploração apaixonada do desconhecido, preferiu a apotese do conhecido. Ao infinito, porque a aventura eterna não findará jamais, porque o regresso é a reconciliação com a finitude da vida. No entanto exalta-se a dor de Ulisses, traça-se de lágrimas. Partilhara o leito de Penelope que voou para longe. Tão longe onde ninguem a conheça, numa cidade distante, debaixo da sombra do vento, queimando-me a alma. Mas Ulisses vai estar à espera, sempre.

Chuva

As coisas vulgares que há na vida
Não deixam saudades
Só as lembranças que doem
Ou fazem sorrir

Há gente que fica na história
da história da gente
e outras de quem nem o nome
lembramos ouvir

São emoções que dão vida
à saudade que trago
Aquelas que tive contigo
e acabei por perder

Há dias que marcam a alma
e a vida da gente
e aquele em que tu me deixaste
não posso esquecer

A chuva molhava-me o rosto
Gelado e cansado
As ruas que a cidade tinha
Já eu percorrera

Ai... meu choro de moça perdida
gritava à cidade
que o fogo do amor sob chuva
há instantes morrera

A chuva ouviu e calou
meu segredo à cidade
E eis que ela bate no vidro
Trazendo a saudade

Sinestesia


Estou carregado de inspiração, mas não sei como chover. Só quero chover para ti, para que as gotas caiam na tua face e te deslizem sobre o teu corpo, para me sentires. Imagina-te numa maresia tua, naquela casa, rodeados pelo frio, abraçados solenemente naquele toque que só nós sabemos. Ou então naquela cidade na lua cheia, iluminados pelo amor, o primeiro local destinado. Ou no teu sonho...ou em qualquer lugar. Sussura-me um desejo, um segredo o que fôr, que eu ponho neste verso o meu coração. Ouve...lá ao fundo o caminho perfeito, é a via da rosa, é o hino do amor que nos chama. Consegues ouvir? Toca...nesta suavidade da maré que nos afoga, consegues sentir? Vê...esta paixão que arde na vela do nosso pensamento, do nosso sonho, consegues ver? Cheira...este perfume que criei, um azul só teu, consegues cheirar? Saboreia...os meus lábios, quero-te!Consegues saborear? E o mais importante...sonha, sonha para que se realizem, sonha para que se desvaneçam num solene leito. Estás a ouvir agora? É o barco amarelo que nos vai levar. Vês agora? É o nosso nome que nos traçou. Cheiras agora? É o sangue derramado que nos completa. Sentes agora? É a nossa respiração mutua que nos eleva. Saboreias agora? É o fruto do nosso amor puro. No caminho, desde início tivemos uma sinestesia mutua, um critério de semelhança, uma escrita viva, um porto seguro, uma rocha moldada, um refugio criado, uma melodia que nos toca, as saudades que lembraram e as memórias que guardo. Naquele terraço aberto, no tempo trocado, na semelhança dos antepassados que nos albergam. Desde sempre sinto a alegoria criada, desde sempre que te olhei nos olhos, desde sempre.

Se uma manhã de verão uma criança...

Todas las cosas del mundo llevam a una cita o a un libro

O som do nevoeiro


Num vale profundo, carregado de nevoeiro, na vespera da melancolia. Surge um som distante. Um frio gela os ossos. Outra vez. Aquele som que arrefece o frio. Ficamos parados a contemplar este frio que congela. Estranha luz, quando as luzes matinais se confundem com as do crepusculo, criando um efeito um pouco irreal. Surge de novo o nevoeiro. Calmo, solene, estranho, indica o caminho para o grande palácio onde jaz o grande mistério da vila. Em verso não da para o descrever, só a mente o pode tentar imaginar. Na sombra do amanhecer, uma melodia angelical ecoa nas arcadas brancas e límpidas do mosteiro e cria um som de nostalgia próspera para o novo amanhecer. De novo surge o som distante. Frio. Estranho. O vale estremece. O frio cala-se. Está tudo calado, imóvel. O tempo pára para ouvir o som do nevoeiro.

Lágrima de Preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.


António Gedeão