Círculo Azul do Tempo


O renascimento surge de formas ocultas a quem não sente verdadeiramente as feridas do tempo. É claro e mais translúcido que o próprio nascimento. É a reunião de todos os sentimentos já vividos. Mas estes são mais sublimes. Mais conhecedores do espelho em que nos vemos todas as madrugadas até ao lento círculo azul do tempo.

A Lentidão das Fontes


Vazaram-se as luas da savana
Ossadas pálidas emigraram
Dos corpos para o chão
Ajoelharam-se os bois
Exaustos de carregarem o sol
Escureceram as horas
Nomeadas pela fome
Extingui-se o sangue da terra
Esvaiu-se o leito
Num coágulo de saudade

Restam troncos
Sustendo gemidos
Mães oblíquas
Sobrando migalhas
Mendigando crenças
Para salvar os filhos já quase terrestres

Quem protege estes meninos
Feitos da chuva que não veio?
Que casa lhes havemos de dar?

Amanhã quando se entossoarem os cânticos do céu
As aves voltarão a roçar a lua
E as cigarras de novo espalharão seu canto

Mas dos meninos
Talhados a golpes de poeira
Quantos restarão
Para saudar o amanhecer dos frutos?

O Mundo-Tempo


Não me ocupava ainda de ser, e já a vida decidira da minha posse. E o tempo não se disperdiçou nas pequenas fracções de mim, sob os meus passos se deteve dúvida alguma. O Mundo, depois destes dias, abrira o seu peito e os homens estreitaram-se e segredaram-se na cabeceira deste tempo e à poesia pediram que lhe fosse grata que me mantivesse pura, mas a palavra não se deteve nem se calculou na matemática da conveneência. É já tempo de um outro tempo. E a poesia convoca os seus soldados e nos bunkers da imaginação se abriram as portas da verdade. Assim mesmo quando a solidão me condecorou com a medalha da ausência as palavras que traduzira no idioma da vida. Porque é só quando sentimos o peso do tempo, que por vezes, sentimos o peso mais pesado. O verdadeiro valor do que nos é mais precioso.

Ave Negra


Começo a chorae do que não finjo porque me vi de caminhos por onde nunca fui e regressei sem ter nunca partido para o norte aceso no arremesso da esperança. Nessas noites em que da sombra me disfarcei e incitei os objectos na procura de outra cor, encoragei-me a um luar sem pausa. E vencendo o temoi que se faz tarde disse: o meu corpo começa aqui e apontei para o nada...porque me havia convertido ao sonho de ser igual aos que não são nunca iguais. Faltou-me viver onde estava, mas ensinei-me a não estar completamente onde estive, e a cidade dormindo em mim não me ouviu entrar na cidade que em mim despertava. Houve lágrimas que não matei porque me fiz de gestos que não prometi. E na noite abrindo-me como toalha generosa servi-me do meu desassossego e assim me acrescentei.

Voz da Infância


Sou agora menos eu. E os sonhos que sonhara ter, acordaram em teu leito. Que me dera acontecer essa morte, de que não se morre. Porque em tempos perdi a audácia do meu próprio destino, saltando a ânsia. E agora sinto. Sofro do que não sofri. E anoiteço, vivendo na vida os erros que me desertaram. Ofereço o mar que em mim se abre à viagem mil vezes adiada. De quando em quando me perco e de mim me desencontro, como se o eco das mãos e a casa dos gestos, me olhassem com todos os olhos opacos e vazios. Assim me debruço. Sobre a janela e escolho a minha própria neblina que me permite ouvir o leve respirar das pequenas coisas sepultadas em silêncio. E eu invento o que escrevo, escrevendo para me inventar e tudo me acorda, porque tudo desperta a secreta voz da infância.

O Desejo de Ser

Entre o desejo de ser
E o receio de parecer
O tormento da hora cindida

Na desordem do sangue
A aventura de sermos nós
Restitui-nos ao ser
Que sempre fomos.

Aproximo-me da noite, e o silêncio abre os seus passos escuros, como que um buraco que absurve escuridão e luz. Esta deveria ser a hora em que me recolheria como um poente no bater do teu peito. Mas a solidão entra pelos meus vidros e nas suas mãos solto o meu delírio. É então que surges, com teus passos de Mulher, os teus sonhos guiando-me por corredores infinitos e regressando aos espelhos onde a vida te encarou.

Um Poema me rezou

Para que Deus me escrevesse
Entortei as linhas do tempo

Passaram os sete dias do infinito
E Deus não me palavreou

Nessa espera
Sonhei de vês
E divinizei a palavra

Como Deus me sempre desedenreçou
Fui caindo em desabismos
Desguarnecido de anjo
E em tudo quanto fui
Só demónio me guardou

Então veio a suspeita
Deus já não acredita em nada?

Até que, certa vez
Um poema me rezou
E assim me confortei
A justa palavra
Talvez restasse a crença
De um Deus em nós

Pedi licença à morte
Pedi perdão à vida
Mas não tive notícia
De quem eu queria que me salvasse

E ainda hoje
Só quem reza
Lê as linhas entortadas da poesia