Pergunta-me


Pergunta-me, se ainda és o meu fogo, se acendas ainda o minuto de cinza. Se despertas a ave magoada que cai no ramo do meu sangue. Pergunta-me se o vento não traz nada, se o vento tudo arrasta. Se na quietude do lar repousam a fúria de mil raios. Pergunta-me se te voltei a encontrar, de todas as vezes que me detive junto das pontes enevoadas, e se eras tu, quem eu via, na infinita dispersão do meu ser. Se eras tu que reunias pedaços do meu poema, reconstruíndo a folha rasgada na minha mão crente. Qualquer coisa, pergunta-me qualquer coisa, uma tolice, um mistério indecifrável, simplesmente para que eu saiba que queres ainda saber, para que mesmo sem te responder saibas o que te quero dizer.

Um dia...


Magoa-me a saudade do sobressalto dos corpos, ferindo-se de ternura. Doi-me a distância lembrança do teu vestido caindo aos nossos pés. Magoa-me a saudade do tempo em que te habitava como o sol ocupa o mar como a luz reconlhendo-se nas pupilas desatentas. Seja eu de novo tua sombra, teu desejo, tua noite sem remédio, tua virtude, tua carência. Eu que longe de ti sou fraco, eu que já fui água, sou agora gota trémula. Traz de novo a transparência de água. Dá ocupação à minha ternura vadia, mergulha os teus dedos no feitiço do meu peito e espanta a maneira a que sempre renunciaste e volta a ser aquilo que foste um dia.

Tanta


Hoje cheguei e não havia o teu sonho reconfortando-me. Fiquei triste e sem coragem. Não é possível tu estares comigo e isso rouba-me o coração. Este desejo de te querer junto a mim é um desejo egoísta, eu sei. Faço-te esta confissão de egoísmo para que saibas, que te amo de todas as maneiras que sei amar. E mesmo assim sinto que não sei amar, que me falta estar vivo. Quero que respeites esta insuficiente maneira de amar de mim. E que me recordes por trás de cada coisa transformada há sempre uma gota de sangue:Tudo resulta da luta, mesmo que essa luta tenha sido apenas interior e aparente.

Troço


Lágrimas soltaram-se dos teus dedos quando anunciaste este troço de tempo. E eu que habitara lugares secretos e me embriagara com os teus gestos, recolhi as palavras vagabundas como a tempestade que engole os barcos porque ama os pescadores. Impossível agora que gravaste o teu sabor sobre o súbito e infinito parto do tempo. Por isso te toco, no chão e na terra, na poeira e da luz a minha mão reconhece a tua face idilíca. E quando o Mundo suspira exausto e desfila entre ondas e ruas eu escuto sempre a voz que é embalada do dia à noite perdida no tempo.

Carta aos amigos mortos


Eis que morrestes, agora já não bate o vosso coração cujo bater dava ritmo e esperança ao meu viver. Agora estais perdidos para mim-o olhar não atravessa essa distância-Nem irei procurar-vos pois não sou Orpheu, tendo escolhido para mim estar presente aqui onde estou vivo. Eu vos desejo paz nesse caminho fora do mundo que respiro e vivo. Porém aqui eu escolhi viver. Nada me resta senão país de dor e incerteza. Aqui eu escolhi permancer, onde a visão é dura e mais dificil. Aqui me resra apenas fazer frente ao rosto sujo do ódio e da injustiça. A lucidez me serve para ver. A cidade a cair por muro e as faces a morrerem uma a uma. E a morte que me conta, ela me ensina que o sinal do Homem não é uma coluna. E eu vos peço por este amor cortado, que vos lembreis de mim lá onde o amor já não pode morrer sem ser quebrado. Que o vosso coração que já não bate, o tempo denso de sangue e de saudade, nos vive a perfeição da claridade. Se compadeça de mim e de meu pranto. Se compadeça de mim e de meu canto.