Quero este poema no lugar do sublime,com uma cadeira de névoa ao colo da estátua e os seios de erva tingidos de púrpura. Puxoa túnica até à abertura do ventre; e roubo ao interior de pedra um desenho etéreo,como se o paraíso estivesse no centro do umbigo, inscrito na massa obscurado amor. Moldo-a com as mãos da alma,esculpindo um corpo. Por vezes, apercebo-meda sua respiração, de um palpitar de artériasno interior do mármore. Ouço um desejo fremente, o choro de êxtase que antecipa o esgotamento, o sussurro que permaneceno ouvido quando o sol se esvai num horizonte de cortinas, e os vidros reflectemos amantes. E dou-lhes o lugar que o sublime habita, com o seu rosto trabalhado pelo cinzel do sentimento, raspando a cal do sonhoaté deixar entrar a água da vida: a doceagitação de um abraço, o perfil entrevistonuma humidade de travesseiros, lábiossubindo a breve colina das pálpebras. Canto,então, este canto que se prolonga no corredor do poema, atirando para o lado os obstáculos da indecisão, abrindo labirintos e becos, até às portas de argila da memória. Abro-as com a chave dos murmúrios que me emprestaste, rodando-a com os dedos do silêncio; e encontro a tua voz, com o seu fogo de sílabas, e um ritmo de luz em cada palavra. Trata-se de um lugar sublime, esse em que a mulher límpida se senta, limpando a névoa desta casa com a sua esponja de linguagem, numa sofreguidão de segredo que o verso ecoa.
A concha
A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fechada de marés, a sonhos e a lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.
Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.
E telhadosa de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta pelo vento, as salas frias.
A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.
Vitorino Nemésio
Segreguei-a de mim com paciência:
Fechada de marés, a sonhos e a lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.
Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.
E telhadosa de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta pelo vento, as salas frias.
A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.
Vitorino Nemésio
Silêncio
Agora oiço os passos madrugais, os grunhidos utópicos e acima de tudo um silêncio. Mas não é um silêncio qualquer. É o silêncio. A névoa cobre-me encurrulando-me até ao poço que um dia subi e agora o destino quer que eu volte para a escuridão. Os sentimentos iluminados e a flor da vida já não se manifestam e não me regam o meu jardim murcho. Páro. Páro no silêncio. Hoje acordei sem que me olhasses. Páro. Já não consigo não parar. Mas quero parar. Escuto o tumulto que só o silêncio permite ouvir. Mas este silêncio permite ouvir coisas ocultas que nunca tinha ouvido e no meu leito solene e frio envolvo-me no silêncio.
Norte
Vou em busca...à busca do quê? De nada. De tudo. Um complemento solene que me guie no ofusco mais brilhante. Abro os braços para o teu norte, para a viagem infinita ao esplendor invisivel. Abro os braços no mar e sinto um ligeiro calor, que vem de onde? De onde vêm as recordações que um dia sonhei, o toque perfeito, a sintonia encontrada. Sonho agora para o teu leito desaguando na melancolia de a vila perder a cor. Moldaste a rocha, atiras-te o símbolo, beijaste o destino. Os ponteiros passam e rasgam a madeira velha do relógio, prolongando a calmaria dos carneiros do mar. Vasto alegro, onde me sento retomando meu corpo exausto e perdido no floral longíquo que agora é uniforme na minha mente. Uma mensagem que Deus deixa é omnisciente ao ponto de o ser co-existir com o haver simbólico que me marca. Venero o jogo do frio, tento-te ensinar esta perfeição melódica que me aquece e que vais começando a entender simples e suavemente. Na orla amarela, tintilam os relógios dos teus olhos que no som de uma mensagem, uma travessia marítima, tento guiar-te pela luz, gelando os teus ossos. Entendo este padrão veranil que me recorda e enche de riqueza sentida. Sente esta melodia. Cantá-la, senti-la, respirá-la, contigo esta melodia transforma-se em ambiguidade semelhante. Estou à tua espera no farol, basta olhares para a estrela que escolheste, e aí olhares e escutares o silêncio, o tumulto costeiro, o lamento que vem da brisa, o guincho marítimo, escuta o vento marinho, pára. Olha para o céu e escolhe o Norte.
Ilhas
Bem sei que há ilhas lá ao sul de tudo
Onde há paisagens que não pode haver
Tão belas que são como veludo
Do tecido que o mundo pode ser.
Bem sei, vegetações olhando o mar
Coral, encostas, tudo o que é vida
Tornando amor e luz, o que é sonhar
Da à imaginação anoitecida
Bem sei, vejo isso tudo, o mesmo vento
Que ali agita os ramos em torpor
Passa de leve por meu pensamento
E o pensamento julga que é amor
Sei, sim. é belo, é luz, é impossível
Existe, dorme, tem a cor e o fim
E ainda que não haja, é tão visível
Que é uma parte natural de mim.
Sei tudo, sim, sei tudo. E sei também
Que não é lá que há isso que lá está
Sei qual é a luz que essa paisagem tem
E qual o mar por que se vai para lá.
Fernando Pessoa
Onde há paisagens que não pode haver
Tão belas que são como veludo
Do tecido que o mundo pode ser.
Bem sei, vegetações olhando o mar
Coral, encostas, tudo o que é vida
Tornando amor e luz, o que é sonhar
Da à imaginação anoitecida
Bem sei, vejo isso tudo, o mesmo vento
Que ali agita os ramos em torpor
Passa de leve por meu pensamento
E o pensamento julga que é amor
Sei, sim. é belo, é luz, é impossível
Existe, dorme, tem a cor e o fim
E ainda que não haja, é tão visível
Que é uma parte natural de mim.
Sei tudo, sim, sei tudo. E sei também
Que não é lá que há isso que lá está
Sei qual é a luz que essa paisagem tem
E qual o mar por que se vai para lá.
Fernando Pessoa
Navegadora
À volta de mim há a penumbra, com respirações anelantes e súbitas, impulsões, desnorteadas na longa viagem. Quando me sento no vagão, sinto um calafrio que me abre o sonho. Fecho os olhos e uma canção ouve-se suavemente dentro de mim, então o universo organiza-se em volta de mim e a tua voz me declina. Fecho os olhos e saboreio a obscuridade que se faz dentro de mim, saboreio essa certeza de unidade junta. Fecho os olhos, abro os olhos: a minha vida já não é senão este bater e palpebras que me enche e ti, doce e morno no meio da felicidade. Os objectos que se acumulam, os seres que nos maçam, que nós expelimos metaforicamente pelo corpo, regressam à sua existência fora de mim, de mim repelidos, trivializados, decaídos, pela rejeição que recebem de mim. Do meu corpo há a emanação de um orgulho desmedido, de uma consciência que se imagina soberana. Mas pelo contrário, aquela Navegadora, entra-me pela alma, inunda-me o olhar, enche-me e águas lentas a minha alma.
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